"O automobilismo corre enorme risco se passarmos - se é que já não passamos - a enxergar qualquer disputa entre companheiros de equipe como um acidente em potencial, e se começarmos a nos preocupar ao invés de nos divertir com exibições como a que Ricciardo e Verstappen fizeram antes do toque"
A batida foi
na volta 40. Até ali, Ricciardo e Verstappen dividiram curvas repetidas vezes.
Foram praticamente 80% da prova percorridos com um desafiando incansavelmente o outro. Durante o duelo, as câmeras de televisão mostravam, também
repetidamente, os “senhores” dos boxes. Bastava uma freada com o holandês e o
australiano lado a lado, uma fritada de pneu, que logo tínhamos as imagens de
Christian Horner, Helmut Marko ou Adrian Newey. O foco nos carros não bastava.
É preciso sempre mostrar o “chefe”, como a encará-lo buscando um possível
indício de reprovação. A briga na pista ocorre com a benção destes senhores, é
o que parecem querer dizer os cortes de imagem para os boxes sempre que dois
companheiros batalham no asfalto.
Essa mentalidade
existir de fora para dentro já é algo que, de forma preocupante, vale uma
reflexão. Mas é muito pior quando a resistência à briga entre empregados de um
mesmo time está enraizada em uma categoria. Há forças muito grandes dentro da
Fórmula 1 que julgam como algo desnecessário, ameaçador até, o chamado duelo
interno. Assistimos ao longo dos últimos anos vários exemplos desse modo de pensar, em várias equipes
diferentes. Quando acontece o que aconteceu com Verstappen e Ricciardo no
Azerbaijão, a F1 passa a correr um risco enorme.
O que deveria
ser um acidente sem grandes consequências (a não ser para o próprio time, é
claro) para o futuro do maior campeonato de corridas do mundo pode ter sido
mais passo rumo ao dia em que pensar em companheiros brigando lado a lado será coisa do passado... Basta recordar algumas decisões recentes na categoria para saber que Baku tem chances de se tornar um
exemplo do que NÃO FAZER, ao invés de ser lembrado por algo que encantou a todos por cerca de 39 voltas...
Hoje, das pessoas
que estão envolvidas com a Fórmula 1, talvez a grande maioria não foi criada no
automobilismo. Não são “gente de corrida”. Muitas das cabeças pensantes que
tomam decisões em cima de situações como a da Red Bull no Azerbaijão são
oriundas do ramo empresarial, onde resultados estão acima de tudo e para as
quais os fins (ou objetivos) justificam os meios – mesmo que “os meios” passem por
rasgar e romper com as características mais fundamentais do esporte.
Não digo que
seja o caso propriamente da Red Bull – Christian Horner e Helmut Marko são crias de autódromos – e talvez por isso a notícia mais recente indica que não
irão cair na tentação de proibir seus pilotos de brigar - algo tão nocivo para o
esporte. Mas o problema é: o que aconteceu no circuito do Baku pode ter
ramificações em outras equipes, ou até mesmo em outras categorias. Um acidente entre companheiros deixou de ser algo condenável e passou ser algo inadmissível, como se toques em uma corrida de carros fossem o fim de todos os mundos.
O pensamento expresso neste texto baseia-se puramente no que vemos nos tempos atuais. Um exemplo? Durante
a fantástica briga que Ricciardo e Verstappen travavam antes do toque, o
ex-piloto Paul di Resta comentava, na TV inglesa, que a Red Bull já poderia, ou
deveria, exercer algum controle sobre a briga com o pretexto de “otimizar o
resultado” – como se o resultado estivesse acima de tudo e justificasse qualquer
intervenção que torne estéril o decorrer da prova para quem a assiste.
Ricciardo e Verstappen erraram de fato. Jogaram fora pontos preciosos. Mas também deram um show, mostraram que disputas de freadas podem ser realizadas com técnica e precisão. De fato, se exige de um piloto de Fórmula 1 que evite o erro do começo ao fim, e logicamente o toque vai gerar mais "barulho" do que qualquer outra coisa, mas não se pode apagar o divertimento proporcionado ao público na maior parte da prova pelos pilotos da equipe.
Proibir uma disputa na pista é o caminho mais fácil. Essa decisão que pulveriza o elemento mais indispensável para as corridas de carros é a mais cômoda, além de arbitrária e muitas vezes prejudicial para a própria equipe. Nesses momentos de pressão vinda de várias direções é que líderes de equipe como Horner e Marko têm uma oportunidade. É preciso agir contra o toque? Sim. Devem ser duros a portas fechadas? Também. Mas sem jogar na lixeira aquilo que atrai fãs, público, TV e atenção tão fundamentais para o esporte seguir como objeto de fascinação e atração para um público que o campeonato busca conquistar.
Donos de equipe têm obrigações e deveres com seus empregados e empregadores de defender suas escuderias até onde for possível. Mas, muitos deles não percebem, possuem também uma responsabilidade de não eliminar com uma "canetada" algo que, apenas por existir, gera frutos e é bom para o bolso deles próprios: as disputas na pista.
As pessoas dentro da Fórmula 1 não possuem o hábito de olhar o negócio como um todo. Muitos, como por exemplo os competentes mas opacos comandantes da Force India, pensam apenas no resultado próprio e imediato. Não lhes passa pela cabeça que um Grande Prêmio do Azerbaijão sem a batida mas com a disputa na pista que ocorreu por quase 40 voltas já teria gerado uma corrida tão boa que traria uma repercussão extremamente positiva para a Fórmula 1.
A Fórmula 1 vive um bom momento. Está em alta. As pessoas estão ansiosas para ver o que vai acontecer no próximo GP. Uma batida não pode colocar isso a perder, embora a história recente aponte para esse risco. A Red Bull tem competência e um passado que a credenciam a não dar um tiro no próprio pé. Colocar os pilotos numa sala e fazê-los entender que podem fazer mais para evitar uma batida, sem autoritarismo e proibições, será benéfico não apenas para a equipe como para a própria Fórmula 1, e é aí que reside a "responsabilidade" citada acima. Quem gosta de ultrapassagens agradece.
* Para que o texto não se estenda, amanhã posto a "Parte 2"....