terça-feira, 26 de maio de 2015

O Antídoto da Fórmula 1 contra o próprio veneno

O momento da Fórmula 1 exige que algo seja feito para dar emoção às corridas. E a escolhida foi a borracha



"Os pneus de um carro de Fórmula 1 não são mais como pneus normais, não tem mais a função “cotidiana” de apenas ser o contato do equipamento com o solo. Hoje, os pneus são uma peça rigorosa, um filtro tão poderoso que é capaz de se sobrepor às mais importantes inovações aerodinâmicas, a mais avançada unidade motriz, ao mais arrojado dos pilotos que não utilizar seu talento em favor deles, ou ao mais capaz dos engenheiros."



Após uma apresentação pobre em ultrapassagens na Austrália, a Fórmula 1 realizou – pelo menos na opinião da imensa maioria, incluindo a deste que vos escreve – uma prova à altura da expectativa na Malásia. Sim – e como é bom quando acontece, não é? – houve ultrapassagens, fechadas de portas, disputas entre pilotos pela liderança, disputas entre companheiros de equipe (para surpresa de muitos, tenho certeza), enfim: o mínimo que essa categoria tem a obrigação de apresentar a quem liga a TV ou paga – caro – por um ingresso para estar na pista.

Agora, você já se perguntou o motivo da corrida ter sido tão boa? Por que, depois de um passeio da Mercedes em Melbourne, surgiu de repente alguém que não apenas a enfrentasse, mas mais do que isso, até a superasse? O que mudou, o que fez de Sepang algo tão inexoravelmente distante de Albert Park? Testes, não existiram. O trabalho extenuante e ininterrupto nas fábricas? Improvável – por mais que a Formula 1 encontre décimos de segundo em suas sedes todas as terças, quartas, quintas-feiras e etc, não daria tempo para uma mudança tão brusca em tão pouco tempo.

“Simples, trata-se de uma pista diferente” dirão incautos leitores. Sim, não se discute que Sepang é um autódromo de verdade, enquanto que Melbourne – por mais encantadora que seja na minha visão – é um parque, com um circuito e um asfalto que não foram feitos à feição da Fórmula 1, mas sim adaptados a ela.

A diferença de traçado também é pouco para explicar como uma Ferrari que levou um segundo e meio da poderosa Mercedes pôde conquistar uma vitória sólida, segura e incontestável. Houve algo a mais que fez de Sepang um local onde as disputas ocorreram, onde pilotos disputaram freadas e brigaram por posições tendo que explorar seus repertórios de ousadia, habilidade e técnica.

O que houve em Sepang foram os pneus. Pneus Pirelli que assustaram muitos times na sexta-feira, pelo fato de não suportarem a temperatura de 60 graus no asfalto malaio.
A Fórmula 1 testou em Jerez e Barcelona no que nós gostamos de chamar de “inverno europeu”. Nestas pistas, a temperatura média não chegou à metade da de Sepang. Ao contrário do que muitos acreditam, a borracha este ano não é exatamente a mesma do ano passado. Os pneus traseiros possuem composto diferente (especialmente os supermacios, que ainda não entraram oficialmente nas pistas em 2015 – o que ndica que ainda podemos ter alguma surpresa no horizonte), e os projetos dos carros são, evidentemente, também novos.

Ou seja, o modus operandi das escuderias na Malásia se tornou um desafio. Foi a primeira vez que as equipes se viram na situação de extrair o máximo da nova borracha em condições que ainda não estavam precisamente detalhadas em seus relatórios e bancos de dados.

O resultado foi a corrida que vimos neste domingo: estratégias diferentes, pilotos alcançando outros por estarem com pneus mais novos, equipes aproveitando (ou não) uma intervenção do safety car, competidores que foram bem na Austrália irem mal na Malásia, e assim segue... E não foi a primeira vez. Já nos acostumamos a olhar para a pista e ver, fora do traçado normal dos bólidos (essa é sem dúvida a palavra mais bela desta coluna inicial), uma verdadeira nuvem de detritos deixados pelos pneus que, por filosofia, se deterioram.

Mudou a prova, agitou a corrida, trouxe emoção ao esporte, e não foi a primeira vez... Pelo contrário... Desde a temporada de 2011, quando a filosofia que transformou os pneus em “bens não duráveis” foi implementada, a Fórmula 1 viu uma série de corridas que devem até hoje suas ultrapassagens e sua indefinição de quem cruzaria a linha de chegada em primeiro ao uso da borracha – seja através do melhor ajuste do carros, seja através da estratégia de ter a borracha certa no momento certo.

Os pneus de um carro de Fórmula 1 não são mais como pneus normais, não tem mais a função “cotidiana” de apenas ser o contato do equipamento com o solo. Hoje, os pneus são uma peça rigorosa, um filtro tão poderoso que é capaz de se sobrepor às mais importantes inovações aerodinâmicas, a mais avançada unidade motriz, ao mais arrojado dos pilotos que não utilizar seu talento em favor deles, ou ao mais capaz dos engenheiros.

O melhor carro pode, sim, ser derrotado por um carro inferior. Equipes médias podem conseguir bons resultados se dominarem o uso dos pneus (lembrem-se da Lotus em 2012 e 2013, dos pódios de Sergio Perez com a Sauber em 2012, ou o quanto a própria Mercedes sofreu com o aquecimento excessivo de pneus nos primeiros anos da Pirelli). Após tantos anos de mudanças, tentativas (louve-se a intenção) e implementações de soluções (algumas delas com efeitos terrivelmente nocivos como o DRS, mas este é uma assunto para uma próxima coluna), esta é sem dúvida a mais efetiva das regras, aquela que atingiu, sem tirar da pista a essência do espetáculo e do automobilismo, seu objetivo de concepção.

E assim entramos naquilo que eu julgo que será o mais divertido de exercer neste espaço: a reflexão.

Raciocinemos juntos, amigos: Por que precisamos de algo com essa força de influência tão forte para fazer das corridas algo minimamente atraente? Se a ideia é de que cada um vença por seus méritos próprios, que cada montadora entre para despejar sua capacidade de produção e criação, que cada um seja obrigado a construir seu chassi, sem compartilhá-lo com um time de menor orçamento, enfim: se a “filosofia central” que hoje esmaga equipes pequenas é a de que vença o melhor e maior, por seus próprios méritos e com seus caros recursos, por que não soltá-los sem interferências (como estas de pneus, entre outras) na pista e assim dar continuidade à “filosofia central”?

A resposta é simples: se isso for feito, não há corrida. Não há disputa. Se ficar pura e simplesmente por conta do poder das equipes, se ficar pura e simplesmente por conta do poderio financeiro e da tecnologia, a chance de vermos uma corrida com ultrapassagens, estratégias e indefinição do vencedor se reduzirá exponencialmente. A Fórmula 1 cria artifícios porque sabe que não haverá uma equalização, e isso é algo que ela deveria promover no conceito inicial do campeonato.

A regra dos pneus é efetiva e funciona muito bem, mas só existe porque a Fórmula 1 precisa de um antídoto contra seu próprio veneno.


Texto publicado em 02/04/2015 no site Velocidade

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